10 de abr. de 2012

Nega Maluca



O seu nome fugia à regra, bem como a sua pessoa: Delmita. Ela era linda, talentosa e negra. Aí você me pergunta: - Por quê inserir o seu tom de pele como um de seus adjetivos? Eu lhe responto:- Naqueles anos 70, vividos em uma cidade do interior de São Paulo, onde a população bem sucedida era majoritariamente branca, Delmita era uma exceção à regra.

Filha de cozinheira e um pai de passagem: fez e foi embora, Delmita fora criada pela mãe e depois de alguns anos, pelo padastro que também a adorava. Não tinha como não gostar dela. Sua cara tinha o formato de um sorriso. Fizesse sol ou chuva, Delmita estava lá, em casa ou na rua, estampando o seu sorriso Kodak, feito de dentes enormes e incrivelmente brancos. Sua voz era aveludada. O seu corpo, talhado em curvas, caminhos e descaminhos que fizera muito marmanjo chegar em casa com torcicolo, depois de tê-la visto passar. Não era muito alta, do tipo que poderia ter virado miss ou modelo, porém saiu-se bem desfilando para bazares beneficentes e lojas de roupas femininas da cidade. Na falta de outras mais altas, Delmita era sempre escalada. O que não tinha de altura, esbanjava de sensualidade. Pena que seu pai não tivesse tido a oportunidade de ter vivenciado uma criatura tão valorosa.

Eu fui amigo dela em minha adolescência. Éramos em quatro amigos inseparáveis: Maisa, Delmita, Amarildo e eu. Juntos, fomos à inúmeras seções de cinema (o filme era trocado a cada 30 dias; isto se não fizesse muito sucesso e tivesse as exibições estendidas por mais alguns dias); passamos longas tardes de Domingo sentados na mureta da casa de Maisa vendo os carros e as paqueras passarem; quando um era convidado para uma brincadeira (os bailinhos da época) ou um aniversário qualquer, os quatro se sentiam convidados e lá íamos nós; se um fosse barrado, os demais, sob veemente protesto, iam embora; brincamos juntos alguns bailes de Carnaval; dançamos o tema da novela Dancing Days na boate do Araçatuba Club; as meninas, claro, usando aquelas meias de listras coloridas em lurex, iguais as da Sonia Braga; sentamos na mesma mesa do Bola 7 infinitas noites de Sábado, digerindo um guaraná ou uma uma soda limão que deveria durar a noite inteira; nadamos na piscina da chácara de minha avó (ai que saudades) e apanhamos muita fruta no pé pra matar a fome enquanto nos divertíamos tomando Sol (sim, Delmita tomava Sol para ficar mais negona) e ouvindo o rádio sintonizado na FM Cultura.


Algumas vezes senti-me culpado pelo preconceito que carregava dentro de mim e que em algumas situações apresentava-se dizendo: presente.

De todos os seus talentos, o que a meus olhos era o maior, era o seu dom para a costura. Aprendera e sabia costurar como ninguém. Estava sempre impecável, vestindo o modelito da hora, feito por ela especialmente cada ocasião. Se a moda pedia o laranja, lá estava Delmita feito uma fruta no pé. Se a moda pedia um rosa-chiclete, lá ia Delmita parecendo um chiclete Ping- Pong; se moda pedia uma saia godê, lá estava Delmita parecendo um botijão a gás. O que as meninas ricas gastavam nas roupas compradas nas boutiques da cidade, Delmita fazia baratinho comprando o tecido e costurando as peças. Para auxiliá-la nas construções elaboradas, contava sempre com o " auxílio luxuoso" das revista Manequim.

Quando entrei na faculdade, em São Paulo, fomos gradativamente perdendo o contato até que não nos falamos mais. A sua vida seguiu adiante e muitas coisas aconteceram: teve uma filha, fruto de uma paixão passageira, e virara costureira afamada. Um câncer de pulmão, tirou-a de circulação aos recém completados 50 anos. Soube pela irmã de Maisa que até mesmo na noite em que fora para a Santa Casa para de lá não mais voltar, calçava um elegante par de sapatos que ganhara de uma amiga, na ocasião de seu aniversário.

É isto aí, nega maluca: os gringos que habitam o céu devem estar na enfermaria de tando virarem o pescoço ao lhe verem passar.

Beijo do amigo,

Beto


A crônica acima é uma homenagem póstuma a esta amiga que tanto me fez bem. Sou grato por tê-la conhecido e poder ter dividido momentos de minha vida ao seu lado. Fica com Deus, nega.

Delmita e seu talento para a costura serviu de tema para eu apresentar o tecido feito para a designer de roupas JULIANA ARIZA. Juliana costura sob medida e também faz roupas em séries limitadas no atelier que mantém há anos na Vila Madalena, em São Paulo. Ao conhecê-la, propus fazermos este tecido lotado de borboletas, que transformou-se em diversas criações, de casacos a vestidos glamourosos.


O seu site mostra uma destas criações:


E o editorial de moda da revista Claudia, incluiu este belo casaqueto feito com o tecido:


A base do tecido é um tafetá preto, com as borboletas bordadas em fio de poliamida prata e fio trilobal framboesa.


Para complementar o tecido, desenvolvi umas almofadinhas em formato de borboleta, tendo na frente o desenho da borboleta e no verso o logo ARISA e os dizeres: since 2005.


E para arrematarmos o trabalho, produzimos esta etiqueta.

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