Os jovens de hoje não conseguem avaliar o como viviam as mulheres nascidas na primeira metade do século XX.
A luta por uma sociedade mais justa e igualitária, no que se refere a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres estava apenas começando. Naquela época, uma grande parcela das mulheres tinha sua função restrita aos cuidados do lar, dos maridos e dos filhos. As que se aventuravam a trabalhar fora de casa pagavam um preço bastante alto por isso.
Foi neste contexto em que viveu Amélia, bordadeira de mão cheia, vinda de família humilde, e que se casara com um próspero comerciante.
Como era de conhecimento de toda a sociedade local, inclusive da própria Amélia, o seu marido a chifrava a torto e direito. "Não pode ver um rabo de saia", diziam as fofoqueiras de plantão.
A arma que Amelia encontrara para conseguir lidar com aquela situação humilhante fora o silêncio. Fingia que não sabia o que sabia. Todas as vezes em que o marido chegava em casa cheirando a perfume de mulher, ou quando suas camisas de linho - lavadas, passadas e engomadas por ela - apareciam com manchas de batom ou vinho, fazia o de costume: não percebia nada.
"Covarde?", pergunta você. "Não", eu respondo. Ela apenas seguia a receita ensinada pela avó, mãe e todas as mulheres que viviam, ou sabiam de alguém que vivia situação semelhante: o silêncio era a alma do negócio.
Era melhor calar-se e aguentar tudo quietinha, do que acabar desquitada (na época não havia divórcio), tendo que viver e sustentar os filhos sozinha.
No caso de Amélia, apesar do sucesso que tinha em seu ofício, ela não conseguiria sustentar a si e aos filhos com o provento do mesmo.
O marido encarava os bordados como uma forma de Amelia "ocupar o seu tempo"; "distrair-se com as amigas". Não passava por sua cabeça que aquilo que a mulher fazia era efetivamente sua profissão.
O talento de Amélia para os bordados era conhecido por grande parte das mulheres da cidade; principalmente das mais abonadas. As encomendas chegavam de toda parte, à toda hora.Perdera de vista a quantidade de enxovais enviados à capital, outras cidades do interior e também para outros estados A mãe, que morava com ela, fora quem lhe ensinara a bordar. Enquanto viveu, ajudou-a nos trabalhos e na educação de seus dois filhos: um homem e uma mulher.
Amélia tinha - em paralelo aos trabalhos feitos sob encomenda - uma atividade que as freguesas não conheciam, muito menos seu marido e filhos. À quem lhe perguntava o significado daquilo, apenas dizia:
- "Isto não é nada. É apenas uma forma de eu treinar novos pontos...".
O que ela chamava de "nada" era um livro que ela escrevia (bordava), página (tecido cambraia de linho) por página. Ao término de cada "página", ela tomava o cuidado de costurar os quatro cantos com uma máquina de costura, e a guardava junto às demais em uma caixa de madeira, trancada à chave.
Diferentemente dos bordados encomendados, cheios de patinhos na lagoa, menininhas regando flores com o baldezinho, meninos jogando bola, aves no céu, aquelas "paginas" tinham uma outra temática. Eram cenas cotidianas, envolvendo adultos e crianças; casais conversando entre quatro paredes; jantares sob a luz de candeeiros; mulheres saindo de dentro de carros dirigidos por homens desconhecidos, sempre à noite. Em resumo, os temas não eram nada infantis.
A única pessoa que - com o passar do tempo - desconfiara de aquilo tudo tratava-se de um livro que a mãe bordava, capítulo por capítulo, foi a sua filha, Maria Luisa. Malu, como era conhecida, sabia de longa data que os pais tinham sérios problemas conjugais e que a vida da mãe não era nenhum conto de fadas. Já adulta, entendera que a mãe encontrara naquele trabalho uma válvula de escape que lhe permitia colocar para fora tudo o que engolira ao longo dos anos.Pois ela tinha razão: aquelas "folhas", que já passavam de 500, contavam os sonhos e devaneios de Amélia.
Quando vira que a mãe já esta velhinha, Malu resolveu que faria uma surpresa à ela.
Escondido da mesma, que já não mais "escrevia" com tanta assiduidade, tratou de reunir todas as "folhas" (já que sabia o esconderijo da chave) e levá-las a um encadernador, para que o mesmo fizesse a encadernação da obra. Ao tê-la pronta, daria de presente à mãe em seu aniversário de 80 anos.
A capa foi escolhida a dedo: era um dos bordados, onde aparecia uma senhora sentada em um banco de praça, feliz da vida, ao receber um buquê de rosas vermelhas de um moço lindo, loiro, alto e desconhecido. Aquele era o personagem principal da história, o homem dos sonhos da bordadeira.
Páginas de pano fala de profissões seculares como as das mestras bordeiras que, através de sua arte singular, espalham beleza e encantamento nas peças criadas para os mais diversos fins: nascimentos, batizados, noivados, decoração etc. Muitas das peças criadas atravessam gerações de uma mesma família, sendo usadas por seus membros durante décadas e décadas.
Para ilustrar o conto, escolhi um trabalho que realizei em 2006 para a hoje consultora de imagem, personal stylist e personal shopper, Ucha Meirelles.
Ucha tinha uma marca de roupas e acessórios com o seu primeiro nome: UCHA. Durante o nosso primeiro encontro, Ucha manifestou o desejo de fazer um logo que fosse a sua assinatura. Enquanto conversávamos, eu fazia alguns rabiscos em meu caderno de anotações, reproduzindo o seu nome. "Pronto!", disse-me ela de repente: "...é exatamente isto o que quero. Pode arte-finalizar do jeito que está, apenas engrossando um pouco as letras.". Quando vi, havia criado o seu logo. Tenho muito orgulho de fatos como este onde eu, através de meu próprio esforço e boa vontade, consigo realizar os desejos de meus clientes. Para comprovar o fato, segue o logo original criado com a minha letra no caderno ainda guardado.
A assinatura virou uma linda etiqueta, uma etiqueta de numeração (feita também com a minha letra), uma fita de presentes (infelizmente não tenho uma amostra da mesma) e uma almofadinha. As peças têm o fundo em amarelo vivo e as letras bordadas em vermelho ferrari.
Fotografei as mesmas utilizando como pano de fundo um livro de arte de meu acervo pessoal totalmente dedicado a peças de alta-costura, onde o foco principal são os bordados manuais. O nome do livro é EMBROIDERY ITALIAN FASHION, de Frederico Rocca, editora DAMIANI. Espero que goste.
A própria capa do livro é bordada, assim como o seu conteúdo.
Fotografei a etiqueta e as almofadinhas sobre diversas páginas do livro; procurei páginas com diferentes cores de bordado.
A imagem que abre o post é um bordado realizado pelo artista plástico Rodrigo Mogiz. Veja mais em: http://artesanatoparaipatinga.blogspot.com.br/2011/02/quando-bordei-desenhos-no-seu-coracao.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário