7 de mai. de 2013

O dono do banco



Havia prometido para mim mesmo que todas as estórias contadas no blog seriam leves e alegres. Todas com final feliz. Mas com o passar do tempo vi que isto era bobagem, já que a vida nem sempre termina assim. Às vezes os homens nos surpreendem de uma forma ruim.

A estória que se segue foi inspirada em um artigo de jornal que li sobre  a morte misteriosa de um mendigo, com traços de debilidade mental, que fazia morada no parque Alfredo Volpi e que um dia, misteriosamente, fora assassinado. Quem poderia querer matar um homem que não fazia mal a ninguém!. Ele só queria viverem paz....e poder dormir sobre o manto das estrelas.

Todo final de tarde era a mesma coisa. Por volta de 17:00 aquele homem entrava no parque e - à passos pequenos - subia a ladeira que conduzia às trilhas abertas no meio da mata. Seu aspecto era rude e via-se pela aparência tratar-se de um morador de rua. Mais um dentre tantos outros que vivem na cidade.

Os guardas do parque já o conheciam e limitavam-se a observá-lo, sem nunca abordá-lo. Faziam de conta que não viam que o mesmo fazia daquele lugar a sua morada.

Se você de fato se aproximasse dele, veria que os traços de seu rosto denunciavam uma certa demência. Ele não era normal. Se quiser, poderemos dizer que se tratava de um homem à margem da normalidade.

Esboçava às vezes um sorriso débil, mostrando um desnível considerável entre o lado direito e esquerdo de sua boca. Os dentes que lhe sobraram tinham um aspecto seboso, amarelado, típico das arcadas dentárias que nunca visitaram um dentista.

Naquela tarde, mais uma vez, ele estava subindo vagarosamente a ladeira, tendo nos pés um sapato que fazia de chinelo, já que seus pés eram um ou dois números maiores que o mesmo.

O roteiro traçado era o mesmo de sempre: subiu a rua principal até o momento em que ela se bifurcava à direita e à esquerda. Seguiu então pela esquerda, onde - alguns passos à frente - havia um banco de madeira, próximo a aparelhos rústicos de ginástica. Ali ele montou o seu acampamento, tirando da mochila um pedaço de espuma esburacada, que, ao ser desenrolada sobre o banco, transformava-o em cama. Na sequência retirou da mochila uma garrafa de água e colocou-a no chão, próximo do local onde,ao deitar-se, ficava a sua cabeça.

Depois disto foi a vez de pegar um cobertor herdado de um abrigo da prefeitura e colocá-lo sobre o corpo já estendido no banco.

Logo mais, ao cair a noite, ele já estaria dormindo. O silêncio naquele lugar se fazia sepulcral. Tirando a sinfonia de grilos, corujas e eventuais passos de gatos e pequenos roedores, ou então o balançar das árvores em noites de ventania, no restante do tempo era silêncio total.

Aquele homem sentia que aquela era a sua casa. O lugar lhe dava a segurança que necessitava para dormir em paz, sem maiores preocupações ou chateações. Ao amanhecer, com o local já habitado pelo cantos dos pássaros, levantava-se, fazia o caminho de volta e já próximo à saída, molhava o rosto na água fresquinha que saía de um chafariz.Enchia novamente a sua garrafinha e partia então para voltar de novo no final do dia.
Aquela noite, sem que ele pudesse saber, tudo seria diferente. Ele já se encontrava dormindo quando um homem misterioso, guiado pela luz de uma lanterna, começou a caminhar em sua direção. Seus passos podiam ser ouvidos claramente pelo pisar de suas botas sobre o manto de folhas secas caídas ao chão. Apesar da escuridão, dava para ver que vestia um longo casaco preto, tendo nas mãos, pesadas luvas de lã. O pequeno farolete lhe indicava o caminho a seguir. A assertividade com que conduzia seus passos fazia-nos ter certeza de que ele conhecia bem o local.. E sabia exatamente o que queria encontrar. Ao se aproximar do mendigo, parou em sua frente, fitou-o por um longo instante e só então jogou o facho de luz para o rosto do infeliz.

Assustado, o mendigo levantou-se de sobressalto e, sem entender nada, olhou para o homem sorrindo à sua frente:

Com muito esforço, tomado de medo, disse-lhe um "oi".

- "Oi" - respondeu o algoz em tom sarcástico.

- " O que você quer?" - perguntou.

Como o homem não lhe dissesse nada, insistiu:

- "O que você deseja? Eu estou só dormindo...."

- "Dormindo, né! Pois você vai dormir agora o sono eterno, seu vagabundo!"

E antes que o mendigo pudesse esboçar qualquer reação, o homem de preto agarrou-o pelo pescoço e não parou de apertá-lo até que o mesmo desistiu de lutar e se entregou. Ao ver que o mendigo já não esboçava mais qualquer reação, o homem soutou-o, assistindo seu corpo cair inerte, parte sobre o banco e parte ao chão.

O que poderia explicar um ato daqueles? Por que querer matar um homem que não fazia mal a ninguém?

Estas e outras perguntas ficarão para sempre sem resposta.Afinal, quem irá se preocupar com um homem que não tinha CPF, residência fixa e cuja história de vida ninguém conhecia?

Após concluir o "serviço", o homem de preto caminhou em direção ao portão de saída do parque e sumiu, sem se quer arrombar o portão. Estranho, não?

No dia seguinte, durante a primeira ronda da manhã, os dois guardas que fazia o turno encontraram o corpo.
Espantados, chamaram pelo rádio o guarda que se encontrava na guarita e pediram para o mesmo acionar o SAMU.

Aquele banco já não tinha mais dono.

A ideia do conto surgiu pela associação que fiz entre as folhas (ou serão penas?) do tecido que desenvolvi e produzi para a ALCAÇUZ e as folhas em que o personagem do conto pisa enquanto caminha em direção ao mendigo.

Este tecido é deslumbrante: tem o fundo em algodão cru e as folhas (penas?) bordadas em três tons: cipó, fendi e cromado; uma quarta folha surge do fundo do tecido, em efeito marca d'água.



A ALCAÇUZ transformou o tecido em belos casacos longos, casaquetos e vestidos naquela estação.

Desta vez, ao procurar um cenário para fotografar o tecido, contei com a ajudinha de papai do céu. Veja o que aconteceu: estava à caminho do parque Ibirapuera para fazer as fotos quando passei em frente ao estúdio do artista plástico GUSTAVO ROSA. Já havia pensado na ideia de fotografar um de meus tecidos junto a um lápis amarelo gigante que fica no jardim da casa. Quando vi, já estava dobrando a esquina para estacionar o carro. Mudança de rumo: faria as fotos do tecido junto ao lápis.

Posicionei o tecido na grama, junto à imensa ponta preta do lápis e já estava fazendo algumas fotos quando um homem se aproximou. Disse-me:

- "Nossa, nunca havia pensado em fazer algo assim...".

Tratei de me identificar e dizer a razão das fotos, imaginando que ele não estivesse gostando do que estava fazendo.

Ao contrário do que imaginei, o mesmo se apresentou-se a mim (seu nome,:Aguinaldo) e disse-me para que eu ficasse a vontade. Convidou-me para que - assim que terminasse as fotos - entrasse no estúdio para conhecê-lo.










  







E foi o que fiz. Qual não foi a minha surpresa quando o próprio Agnaldo surgiu e me conduziu a um espaço mais que reservado: o ateliê de GIUSTAVO ROSA. Fiz algumas fotos enquanto conversávamos. Surgiu ali um novo e inesperado amigo. Obrigado, Aguinaldo. Desejo a você uma vida com cinquenta tons de Rosa. De Gustavo Rosa.































Este é o Agnaldo, que gentilmente me levou para conhecer o ateliê.


Recado do dia: Você pode atropelar a sorte em uma esquina qualquer, quando ela, sábia que é, atravessa a rua na faixa. Cabe a você parar para socorrê-la, ou sair correndo para nunca mais vê-la.

*A foto que abre este post retrata o artista plástico Jean Michel Basquiat, que foi morador de rua, até ser descoberto por seus grafites no final de 1970 no Lower East Side, em Nova York.

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