24 de mai. de 2012

Hotel do lago. Seja bem vido(a)


Houve uma época em que viajei bastante à trabalho. Fazia parte de minha função. Naqueles anos havia assumido a profissão de supervisor e depois gerente de vendas voltado ao mercado que chamamos de atacado: vendas a lojas multimarcas. O segmento era o de moda. Em um destes trabalhos, coube a mim implementar uma viagem de três semanas acompanhando a representante cuja área de atuação era o interior de São Paulo. Seu nome: Márcia.

Recordo-me com saudades desta viagem. Foram dias de intenso trabalho, viajando de cidade em cidade, visitando os clientes por nós já cadastrados e conhecendo novos possíveis parceiros comerciais. Márcia, a quem já nutria uma imensa simpatia, mostrou-se uma companheira de viagem de primeira qualidade. Eu,nesta época, era casado e ela namorava o rapaz com quem anos depois acabou se casando. Estávamos em Junho de 1998, em plena Copa do Mundo de Futebol. Recordo-me de um dia em que aconteceria um destes jogos. Estávamos em trânsito, indo de uma cidade para outra .Ao entrarmos na cidade programada, estávamos a poucos minutos do início da partida. A cidade havia parado para assistir o jogo. Como não dava tempo de procurarmos um hotel, assistimos o mesmo em meio a uma turma de amigos reunida em um posto de gasolina, com cadeiras de plástico improvisadas para a torcida. Infelizmente naquele dia o Brasil perdeu. Mas o momento da viagem que eu desejo registrar aqui não foi  exatamente este. Contarei a seguir:
Já era noite e havíamos trabalhado o dia inteiro nas cidades de Ribeirão Preto e na vizinha Sertãozinho. Poderíamos ter procurado um hotel naquela cidade para dormirmos e continuarmos a viagem no dia seguinte. Decidimos porém seguir em frente para adiantarmos o trabalho do próximo dia. Nestas viagens eu dirigia e Márcia era o carona. Passamos novamente por Ribeirão Preto, desta vez a caminho de São Paulo. Quando nos aproximamos da cidade em questão (não direi o nome para preservá-la), disse à Márcia que estava muito cansado e que o melhor seria procuramos um hotel ali mesmo.


Márcia não aprovara a ideia, já que não estava certa de encontrarmos ali um bom lugar para passarmos a noite. Confesso que naquela época não tinha o jogo-de-cintura que tenho hoje, e quando encasquetava com uma ideia, era muito difícil alguém conseguir demovê-la. A contragosto de Márcia, entramos na cidade e paramos em um boteco aberto para perguntarmos sobre um possível hotel. A pessoa com quem falamos disse-nos que ali não havia bons hotéis e indicou-nos um que - se não me falha a memória - chamava-se Hotel do Lago. O nome nos pareceu um tanto sinistro. Márcia insistiu que o melhor a fazermos seria seguirmos viagem.

Opus-me a ideia e fomos procurar o tal do hotel.

O hotel ficava distante do centro da cidade. Não sabíamos, mas estávamos naquele momento muito próximos de entrarmos em um daqueles filmes tipo Alfred Hitchcock, e virarmos os personagens principais da estória.

O trajeto até o hotel passava por ruas ermas, vazias de gente àquela hora da noite. Algumas placas talhadas em madeira, posicionadas em alguns pontos do caminho, nos indicavam a direção a seguir.
Márcia, alterada, resmungava e xingava-me a todo instante. Dissera-me que se tivesse coragem, sairia do carro e seguiria a viagem sozinha. A pressão, porém, não me fez alterar o propósito de ficar por ali.


Quando finalmente chegamos na frente do hotel, entendemos o porquê do mesmo chamar-se Hotel do Lago. Ele encontrava-se de frente ao próprio. Com os vidros do carro abertos, escutávamos apenas o som dos grilos falantes e o coaxar dos sapos. Olhando para o lago, podíamos ver uma espécie de névoa que saia da superfície da água e caminhava em direção ao céu. Márcia falou-me mais uma vez:" - Vamos embora daqui.".


Respondi-lhe: "- Márcia, estou morto de cansado e não aguento seguir viagem. É só uma noite. Não vamos morrer por isso."

Já no hotel, não apareceu ninguém para nos receber. O mesmo constituía-se de uma casa avarandada e uma construção ao lado; mais parecia uma pousada. Descemos do carro e nos dirigimos à porta de entrada. A mesma era uma porta de tela, destas que você empurra e a mesma se fecha sozinha. Ao abri-la, fez-se um som de rangido: nheeecc. A nos receber, encontravam-se apenas alguns gatos espalhados preguiçosamente pela mesa comprida da recepção. As demais mesas do local, menores, estavam devidamente prontas - com suas toalhas de plástico estampadas de frutas - para o café da manhã do dia seguinte.Havia os gatos e mais ninguém. Márcia, assustada, fez Nome do Pai. Vi que no balcão existia uma campainha. Bati o dedo e ela tocou: priiiiiiiiiiim. Feito isto, apareceu uma recepcionista, bastante sorridente e simpática, que nos explicou: aquele era um hotel muito procurado por pessoas que vinham à cidade em busca de curas espirituais feitas em um famoso centro espírita.Enquanto permaneciam no local, em tratamento, ficavam no hotel para dormir e descansar. Aquele não era o dia em que os cultos aconteciam; por isto o local encontrava-se vazio.


Após ouvir atentamente a história, Márcia insistiu: "- Vamos embora daqui. Aqui eu não fico.". Disse-lhe então: "- Pois vamos ficar,  já que eu não aguento mais dirigir.". Machista, não passava pela minha cabeça deixá-la seguir viagem dirigindo.

A recepcionista providenciou-nos então dois quartos, um ao lado do outro. Márcia estava com tanto medo que não queria dormir sozinha. Insisti que era preciso, pois prometera a minha mulher que - sob hipótese nenhuma - dormiria no mesmo quarto que ela. Márcia - disse-me no dia seguinte, tomada de raiva e rancor - que não dormira praticamente a noite toda, só de imaginar que na cama que estava já tinham dormido inúmeros doentes terminais ou pessoas com diversas doenças.


A verdade é que nenhum "espírito" apareceu-nos para nos tirar o sono ou a paz. Eu, por minha vez, confesso que dormi como um anjo.

Passados estes anos todos e já devidamente desculpado por Márcia, arrependo-me - não pelo hotel propriamente dito, que não tinha nada de errado -, mas por ter forçado a barra de Márcia, que lá não desejava ficar.


Se pudesse voltar ao tempo, Márcia querida, teria lhe oferecido naquela noite algum hotel - de preferência - de frente para o mar Mar Atlântico, Pacífico, Mediterrâneo ou Vermelho. Hotel do Mar, é isto!  Hotel do Lago, nunca mais.

eu, (a verdadeira) Márcia e um cliente, em uma de nossas viagens
O texto acima serviu de inspiração para apresentar aqui um tecido que desenvolvi e produzi para a designer BIANCA RANUCCI, para a sua coleção Outono Inverno 2012. A inspiração do mesmo veio de uma viagem à costa oeste dos Estados Unidos feita por Bianca e seu marido. Ela inspirou-se no mapa geográfico da região visitada para criar a estampa.


Desenvolvemos a mesma em duas variantes de cores, cada uma com cinco cores de bordado. A variante produzida foi esta de fundo havana. As cores de bordado foram tapera, café, ferrugem, havana e preto. Veja o tecido e as roupas feitas com ele e boa viagem!

estudo do tecido


A CONQUISTA E DERROCADA DE UM TERRITÓRIO

Fora do mapa, você estava
Não era nada além de um território sem nome,
sem dono, sem direção
Quem quisesse encontrar-lhe não a veria
em nenhum continente, país, condado ou município
Para todo efeito você não existia
Depois de um tempo, passadas revoluções, lutas armadas,
conluios e armações, você passou a existir
Deram-lhe um território, com cor definida, forma e tamanho
Passou a ocupar uma região bem próxima ao coração
Dada a localização, pintaram-lhe de vermelho,
Não sei bem se de sangue ou de paixão.
Feito isso, enviaram-lhe para uma gráfica que lhe imprimiu
e fez-se assim um novo mapa geográfico
Pendurada na parede do gabinete, veio alguém e lhe espetou
um alfinete dentro de seu território
Nascia ali a sua Capital
Batizaram-na de Sol Nascente e assim você ganhou
toda uma máquina de administração, incluindo aí
verba para implementação de projetos e obras
De repente, certo dia, você virou a casaca
e mudou de partido
Trocou a bandeira, o hino e passou
a tocar em outra estação
Hoje você ainda é um mapa pendurado na parede,
porém já desatualizado, e como todo mapa velho,
não serve mais para estudo ou orientação
Sendo assim, a retirarei da parede e a encaminharei para reciclagem
Quem sabe você se transforme em outra pessoa e volte a ter uma outra função
Nunca mais, a dona de meu coração

Andando pela marginal Pinheiros, a caminho de um cliente, passei por um muro velho, que havia sido pintado de branco para apagar a pintura antiga, colorida. O tempo encarregou-se de descascar a tinta branca, deixando à mostra partes da antiga pintura. O trabalho feito pelo tempo desnudou um mapa, que se não entendido, pelo menos é pretendido.


PS: As imagens em P&B, que ilustram o meu texto, são  frames do filme "Psicose" de Alfred Hitchcock

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