5 de jul. de 2012

De pai para filho

Este conto foi inspirado em um senhor que conheci ao entrar em sua linda barbearia e pedir-lhe para tirar umas fotos da mesma. Além das fotos do local, deixou-me tirar fotos dele cortando o cabelo de um freguês. Pena que as perdi. Passando lá recentemente, fiquei preocupado em ver a barbearia fechada em plena tarde, em um dia da semana. Emocionado, sem saber o que tinha acontecido, tirei umas fotos de sua fachada, com as portas fechadas, e fui para casa inventar esta estória.


Natural de Andaluzia, região meridional da Espanha, Javier Gonzalez desembarcou no Brasil, mais especificamente no Porto de Santos, em 1919, fugindo com a família da Gripe Espanhola. A doença, que rapidamente virara pandemia, vitimizara grande parte da população do vilarejo em que vivia com seus pais, três irmãos e avó materna.


Ao chegar aqui, Javier contava cinco anos recém-completados. Na bagagem, apenas uma pequena mala com algumas mudas de roupa e um coelho de feltro que lhe fizera companhia dia e noite durante a viagem.

Logo após o desembarque, passaram a noite em uma pensão próxima ao porto e na manhã seguinte - bem cedo - embarcaram em uma locomotiva a vapor que os trouxe a São Paulo. O desembarque acontecera na Estação da Luz. Os primeiros nove meses foram os mais difíceis, tendo eles morado em duas pensões diferentes: a primeira no Bom Retiro e a segunda, no Pari. Após este período, estabeleceram-se definitivamente no Brás, bairro em que alugaram a primeira casa. O pai de Javier, Sr. Esteban, que já exercia o ofício de barbeiro em sua terra natal, abrira a sua barbearia a duas quadras de sua residência, na rua Rio Bonito. Os fregueses começaram a chegar aos poucos, vindos primeiramente do bairro, depois dos bairros adjacentes, até que o boca a boca espalhou-se e o salão ganhou fregueses de bairros mais distantes.

Javier aprendera o ofício do pai lentamente, quando - após as aulas matinais - ia para a barbearia e ficava observando os movimentos precisos das mãos de seu pai com a tesoura, fazendo caminhos e descaminhos nas cabeças dos fregueses.O que mais lhe chamava a atenção era o cerimonial do barbear, quando o pai cobria o rosto dos fregueses com aquelas pequenas toalhas embebidas em água quente, quase pelando. Passados alguns minutos, os pelos já amolecidos, começava-se o ritual da lâmina a deslizar pelo rosto. Este era um serviço que demandava, além de destreza, uma confiança absoluta no profissional envolvido. Isto porquê, ninguém em sã consciência vai ficar imobilizado de barriga para cima, de olhos fechados, ficando literalmente nas mãos de alguém que não conheça e respeite o suficiente.

Os anos foram-se passando até que Javier tornara-se assistente de seu pai, cabendo à ele inicialmente atender aos clientes que - à esta altura do campeonato - já faziam fila na porta. O aprendizado dos primeiros anos a observar o pai, valeram-lhe uma destreza que o fizera - aos poucos -  vir a ser tão ou mais requisitado que o dono do salão. O mais difícil foi fazer o pai  entender - e depois aceitar - que seu filho tornara-se seu maior concorrente: um rival à altura.Para vê-lo espumar pela boca, bastava chegar um freguês e, estando ele desocupado e o filho a cortar cabelo,  o mesmo dizer: - Oi, Sr. Esteban. Pode deixar que eu aguardo o Javier terminar - Nossa, nesta hora o tempo fechava de vez na barbearia Andaluzia.

De assistente, Javier passou a sócio do pai. A única exigência feita pelo Sr. Esteban ao filho foi que este - sob juramento - nunca poderia fazer qualquer reforma no prédio que pudesse vir a descaracterizá-lo. Isto posto porque a mesma era cópia fiel da barbearia que ele deixara na Espanha.


Após muitas tesouradas e navalhadas (no bom sentido), as mãos do Sr. Esteban acabaram cansadas e já não mais transmitiam aos fregueses a confiança depositada no passado. Foi quando ele finalmente resolveu deixar por herança a barbearia ao filho, que já não parecia (mas não era verdade) precisar de sua ajuda.

Quando conheci Javier, já por volta dos oitenta anos, encontrei o salão Andaluzia igualzinho ao que fora em seus primórdios. De diferente, apenas a fechadura das portas de entrada que - por segurança - haviam sido trocadas, De resto, incluindo tesouras, navalhas, pentes, bacia de porcelana, mobiliário e espelhos, tudo estava no lugar como no primeiro dia de funcionamento.


Javier orgulhava-se de ter dado continuidade à profissão de seu pai, que fora para ele um espelho de sua vida.

Nestes oitenta e dois anos de existência (estávamos em 2001), a barbearia permanecera fechada apenas um dia da semana. Foi na quarta-feira em que o Sr. Esteban resolveu deixar a rua Rio Bonito para ir cortar os cabelos de um freguês no céu, à pedido do Criador.

 

 Este conto nos faz lembrar também de uma outra profissão tão nobre e antiga quanto a de barbeiro: o alfaiate. Profissão presente em abundância  na vida dos homens do século passado, hoje carece de bons profissionais. Sinal dos tempos? Ainda bem que alguns deles ainda continuem a manejar suas tesouras e máquinas de costura, transmitindo a sua arte às novas gerações. Se alguns dos filhos destes profissionais já não se espelham mais na profissão de seus pais, outros - com certeza - ainda a desejem para si. Hoje mostrarei a etiqueta que fiz para o conceituado alfaiate paulistano, Crincoli. Ele é um expoente da alfaiataria de alto-nível. Atende em seu atelier no bairro dos Jardins, em São Paulo, alguns dos empresários peso-pesados do PIB nacional. 


Sua etiqueta é exemplo de que até o simples - dependendo de como é feito - pode ficar sofisticado. O fundo dela foi feito em tafetá, que tem menos batida que o damask e - por tanto - não tem a mesma definição deste último. Para contrabalançar, aumentei o número de batidas (número de pontos) dos tradicionais 28 para 35 batidas. O resultado você pode conferir abaixo: está na medida certa, não é mesmo, Crincoli?


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