29 de abr. de 2012

Coisa do passado


Recordações de infância. Pedaços de vida. Lembro-me bem das vezes em que acompanhei minha mãe à casa da tricoteira da cidade. Ela era japonesa e trabalhava com duas ajudantes: as duas japonesas também. Chamava-me a atenção aquelas máquinas grandes, de braços metálicos pesados, correndo para lá e para cá, enquanto os cones de fios coloridos rodopiavam no alto das mesmas. O resultado deste movimento eram pedaços de tecido que iam surgindo no corpo da máquina, dando forma ao modelo escolhido pela freguesa. Na sala ao lado ficava o estoque de fios, com uma infinidade de carretéis das mais diversas cores e texturas. O ritual se dava da seguinte forma: a freguesa chegava, explicava o modelo que queria, escolhia os fios desejados; a japonesa tirava as medidas e combinava preço e data de entrega. Depois disto, era só voltar para casa e ficar sonhando alguns dias (dependendo das encomendas da japonesa) com a nova blusa que iria desfilar pela cidade. No caso da minha mãe, os modelos de inspiração vinham sempre das páginas da revista Manchete (a Caras de hoje). A blusa deveria ficar igualzinha a da atriz de cinema ou da televisão que aparecera na foto. A japonesa que se virasse para tal.. Ah, que mundo de magia onde a gente não encontrava pronto o que se queria.Tinha que correr atrás e esperar algum tempo para realizar. Assim era com as roupas que iríamos usar; com as fotos que eram tiradas e depois reveladas; com as cartas que enviávamos para então recebê-las. Era um tempo de espera. Muito diferente de hoje, em que você sonhou, está pronto. Para realizar o sonho, você não precisa nem mesmo sair de casa. Basta ligar o computador, entrar no site, fornecer o número do cartão de crédito, clicar e pronto. Você já comprou e já já vai receber. Esperar para quê? Esperar por quê? É por estas e outras que temos a sensação de que a vida está passando rápido demais. E está mesmo. No embalo dos fast-tudo. Pensando bem, acho que a gente deveria ter uma conversinha com Deus: Que história é esta de termos que esperar nove meses para nascer. Isto é coisa do passado!

retratei o momento da espera neste desenho

O texto acima serviu de inspiração para eu falar aqui do tecido que fiz para BIANCA RANUCCI nesta coleção outono-inverno 2012.


Ele é muito especial. Tem três camadas de folhas e flores que lembram os pontos de tricô; uma camada de cada cor, separadas entre si por um espaço de dezesseis centímetros. Foram feitas quatro variantes de cores, todas elas misturando diversos tipos de fios, como algodão azul jeans; algodão cru; lã; boucle e poliéster. Veja baixo as fotos que fiz:


26 de abr. de 2012

Pelas paredes


O menino subia literalmente pelas paredes. Cansado de não conseguir andar, buscava o apoio delas para tentar levantar-se e manter-se em pé. Pelo menos foi o que lhe foi dito anos depois. Não engatinhara. Ao invés disto, arrastava-se de bunda pelo chão. Para uma coisa esta experiência lhe serviu: limpou muito o chão da casa, lustrando com sua fralda de pano o piso de tacos. Seus avós maternos estavam neste momento na Europa, mais precisamente em Fátima, Portugal, em busca de um milagre. Algo deveria ser feito para que aquele menino viesse a andar. Soube-se depois que, ao contarem a história de seu neto para um turista brasileiro ateu, o mesmo se propôs a fazer com eles o trajeto da procissão, segurando uma grande vela à mão.Assim fizeram os três, avô, avó e ateu. A avó rezando por todo o caminho, segurava o terço de rosas vermelhas na outra mão. Naquele mesmo dia, respeitados os fusos horários de Brasil e Portugal, o pai do menino, na sala lendo jornal, chamou pelo filho: - Vem aqui com o papai. Disse por dizer, porque já estava cansado de convidá-lo em vão. Porém desta vez o menino obedeceu o chamado. Segurando-se primeiramente pela parede, levantou-se, apoiou-se pelas pernas (ainda bambas) e caminhou em direção ao pai.O espanto foi geral. Acontecera um milagre. Qual não foi a surpresa dos avós, que ao retornarem ao Brasil, ainda no saguão do aeroporto, puderam presenciar crédulos (afinal pediram o milagre) o neto que corria em sua direção segurando um maço de flores. Eles não haviam sido informados do fato até então. Como diz aquele ditado, "a fé faz milagres", movida pelo desejo sincero de se fazer algo que muito se quer.


O menino desta história sou eu, quarenta e oito anos depois, um metro e noventa de altura, cujo maior prazer é caminhar. Pé ante pé. Parar, só se for para depois continuar.


Esta história com H, porque real, serve para ilustrar as etiquetas e galão que desenvolvi e produzi para a DEMOCRATA, tradicional marca de sapatos masculinos. O convite para este trabalho veio da estilista de acessórios Cristina Sant'Anna, que desenvolvia naquele momento um trabalho junto aos designers da marca, Luciana e Fernando.


A cartela de cores utilizada incluiu chocolate, tactel prata, framboesa, ouro, ferrugem e azul acinzentado.


24 de abr. de 2012

Direto na fonte


Água que sobe. Água que desce. Água que jorra sem parar. Água exibida, metida em movimentos repetidamente coreografados, iluminados pelas luzes dos holofotes. Às vezes azuis, às vezes vermelhos que viram verdes, brancos e amarelos. Assim são as fontes de água no mundo inteiro, espelho e reflexo de nossas vidas. Quando bem cuidadas, limpas, respeitadas e valorizadas, enchem de alegria nossos corações. Mas quando esquecidas e abandonadas, viram um monumento ao nada, caminho seco do que um dia fora um rio cheio de água.


Faça de sua vida fonte de alegria. Ensine seu corpo a nadar de braçada no amor e na compaixão por si e por todos os demais. Não permita que sua história seja rodada na aridez do sertão, no meio do nada, sem um pingo de poesia, que seja doce ou salgada.


Este texto foi construído em razão de uma fonte seca que vi na cidade. Fiquei imaginando que aquele monumento de cimento, sem vida e sem graça, outrora fora fonte de beleza e alegria para os que ali um dia passaram. Fiz mentalmente a correlação com a vida que pode ser fonte de pura  beleza e magia, ou uma ode seca dedicada ao nada.


O tecido que apresento a seguir foi para mim fonte de muito orgulho. Ele foi desenvolvido e produzido para a coleção de Inverno 2012 da renomada marca de sapatos e bolsas femininas SCHUTZ, que o transformou em uma esplendorosa coleção de bolsas e clutches. Elas acabaram de sair do forno e já podem ser vistas e compradas nas lojas da marca.

O tecido foi feito em duas variantes de cores, as duas recheadas de muita cor e alegria. Foram utilizados fios de lã, misturados a fios de poliéster, o que deu ao tecido uma textura e um visual pra lá de especial.


21 de abr. de 2012

Emilinha, vida e história


Para você que a chama de Maria quando a vê andando pela cidade apenas para ouvi-la gritar "eu não sou Maria", ela é Maria, a louca. Para mim, que a conheci durante alguns momentos de lucidez, ela se chama Emilinha, nome dado pela mãe em homenagem à cantora Emilinha Borba, a quem chamava de " minha rainha". Emilinha disse-me certa vez que ainda podia ouvir a voz de sua mãe cantando Chiquita Bacana enquanto lavava roupa no tanque de casa, rodeada pelos filhos.


Certa tarde, sua mãe saíra de casa para nunca mais ser vista. Estava completamente desgastada pelos meses de cuidados intensos e contínuos para com o seu pai, avô de Emilinha, que sofria de diabetes crônica e a quem, segundo Emilinha, a mesma tinha que escolher qual dos remédios lhe dar, já que o dinheiro não era suficiente para comprar todos os prescritos pelo médico que o assistia. O fato de a mãe ter que decidir pela escolha do medicamento a ser dado, em detrimento dos demais, fez com que ela se sentisse responsável pela morte do pai. A culpa, sabemos nós, não era sua, e sim da pobreza extrema em que vivia, mas para ela, a culpa era sua, sim. Por isso, pirou. Em jargão analítico, surtou. Emilinha lembra-se do último dia em que vira sua mãe. A mesma não dizia "coisa com coisa"; estava irritada e respondia com palmadas e palavrões a cada choro ou solicitação feita pelos filhos. Emilinha era a filha mais velha. 


Estava à época com nove para dez anos e foi ela mesmo quem procurou ajuda de uma vizinha, dias depois do desaparecimento, ao ver que sua mãe não voltava. Ela e e seus três irmãos foram encaminhados à um abrigo tutelar da cidade, de onde ela veio a fugir tempos depois, junto com uma leva de outras crianças.

Nunca mais viu o soube dos outros irmãos. Mudou-se para as ruas da cidade, adotando um bairro atrás de outro.Depois mudou de cidade e assim foi, de cidade em cidade, ate chegar à São Paulo .Estarrecida, com medo, foi morar na praça da Sé e cercanias.


Não sabe contar quantas vezes fora parar na Febem para de lá fugir. Fumou crack, cheirou cola de sapateiro, perdeu a virgindade em um destes embalos e foi mulher de muitos malandros. Perguntei-lhe um dia se alimentara em sua vida algum sonho. Tirando matar a fome, respondeu-me, o seu sonho era ser bailarina. 


Contou-me que certa vez, passando por um casarão no centro da cidade, ouviu o som melodioso de um piano, acompanhado por uma voz de comando feminina que dizia palavras em outro idioma que ela não podia entender. Curiosa, subiu pé ante pé até o  pára-peito da janela com a ajuda de um amigo e ficou ali durante alguns minutos (enquanto o amigo aguentou segurá-la) assistindo o que viu ser uma aula de balé clássico. Ao voltar novamente ao chão, copiou alguns movimentos guardados na memória e saiu rodopiando pelas ruas ao som imaginário das teclas do piano.


Pois é, Emilinha, a sua Maria, escolheu como sua atual moradia as nobres ruas dos Jardins. Por não dar à mínima ao valor do metro quadrado da região, nem carregar  consigo compras ou grandes pertences, dorme na rua que melhor lhe aprouver. Haddock Lobo, Bela Cintra e Alameda Franca são as sua prediletas. Somente interrompe os seus afazeres domésticos quando escuta sua voz a chamar-lhe de Maria. Hora, isto não dá!  Para quem foi batizada com o nome de rainha, ser chamada de Maria é o maior desaforo. E dá-lhe gritos e grunhidos que você diz não entender. Bem-feito, se lhe chamasse de Emilinha, quem sabe ela não lhe cantaria uma linda canção.


Emilinha foi a personagem que escolhi para ilustrar este lindo trabalho que fiz para a designer de sapatos e bolsas JULIANA BICUDO. Juliana é uma competente profissional, advinda da área de arquitetura, profissão que exerceu durante alguns anos. Ela utiliza-se do ferramental da arquitetura para construir seus sapatos e bolsas, moldados pelo bom gosto, originalidade e acima de tudo, criatividade. Para ela é muito fácil usar a expressão: mãos à obra.


O logo JULIANA BICUDO, com a sua bonequinha mascote já é - em si - um charme. É ela quem dá o tom ao tecido e à etiqueta criados, desenvolvidos e produzidos. O tecido tem  como base o algodão cru, com a bonequinha bordada posicionada - como se fosse uma mandala - junto a outras bonecas feitas como marca d'água do fundo.


O efeito é sutil, porém faz toda a diferença. Foram feitas duas variantes de cores, bordô e maracujá. O tecido é utilizado como forro para as bolsas da designer.


Já a etiqueta, feita também nas duas variantes de cores, não precisou de nada, além do logo, para ficar bonita. Ela descansa nas fotos, em uma mini-cadeira cujo assento é feito de palha.


Para conferir o trabalho de Juliana Bicudo, é só dar um pulo até a sua loja na Vila Madalena, S. Paulo e ver bolsas maravilhosas como estas...


Ps: Encontrei o grafite que ilustra este post na Vila Madalena, e acho que ele pode representar  nossa  Emilinha/Maria. Dividida em duas, pálida, esquálida, com olhar triste e meio aterrorizado. Descalça, na rua, sem casa, sem roupa.